quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Cada tom da tua cor



A mulher olhou em volta do quarto. O sol batia gentilmente na janela, fazendo o quarto se encher de um vermelho doce e tremulante com o dançar do vento na cortina. Do lado oposto, um quadro colorido decorava o vazio da quase manhã, enquanto a mulher esfrega a mão nos olhos. Cada unha tinha uma cor: verde, amarelo, azul, rosa, laranja, vermelho, preto, roxo, cinza, apenas o menor dedo da mão esquerda sem esmalte. Ela olhou para seus dedos e viu a maquiagem preta acidentalmente retirada. Levantou-se enrolando o lençol branco no corpo e foi em direção ao espelho vagarosamente. Os dedos se fechavam longos, delicados e firmes, segurando o pano na altura dos seios. Os passos pequenos silenciosamente atravessaram o recinto. Quando alcançou a penteadeira virou-se para o seu reflexo. Piscavam para ela dois olhos muito verdes e profundos, diminutamente tristes. Ela levantou a mão livre e limpou o rímel borrado debaixo dos olhos. Suas bochechas limpas mostravam um desenho impecável de sardas, que pintavam seu nariz da mais perfeita inocência. Seus dedos agora contornavam o restante do batom vermelho que ainda permanecia nos seus lábios volumosos e ainda mais coloridos que o brilho industrial. Enrolou os dedos pelos cabelos ruivos num devaneio praticamente inconsciente, embaralhando seus suaves cachos, que iam sem aviso descansar nos ombros, mas acabavam errando o caminho misteriosamente, pelas viradas inconstantes da noite. Uma freada brusca na rua despertou a mulher de seus pensamentos e a fez olhar para trás.
Na cama, em meio a cobertores e travesseiros, dormia profundamente um homem. Todo seu corpo estava misturado a embriaguez da situação e a mulher não fazia o mínimo esforço para discerni-lo. Certificada a ausência do companheiro, a mulher deixou escorregar o lençol por seu corpo e seguiu para a porta ao lado da janela. Era um banheiro pequeno, branco como o quarto, com uma ducha generosa. Assim, ela ligou o chuveiro. A água quente corria pelo corpo da mulher contornando suas curvas e lavando sua alma. As mãos pegaram uma bucha e sabonete, passando-os rudemente por cada ínfimo de sua pele. Após alguns minutos se enrola numa toalha, abre a porta do banheiro e volta ao quarto. Com passos largos, deixa pegadas molhadas marcando o caminho que faz para recuperar todas as peças de roupa. Coloca a calcinha, blusa e sutiã dentro da bolsa e veste apenas uma bermuda jeans que marcava o meio de sua coxa bem torneada, e uma blusa de moletom, tirada da bolsa, que escondia o quadril largo e a cintura fina. Ela bate a toalha no cabelo rapidamente e a deixa em cima da penteadeira cheia de chocolates em sacolinhas transparentes. Sem olhar para trás, ela pega os sapatos de salto e abre a porta. O barulho desperta o homem, que agora senta na cama e observa a mulher. Ela para e dá dois passos para trás sem tirar os dedos da maçaneta.
-Não vai nem deixar dinheiro? - diz ele com um sorriso zombeteiro nos lábios. O homem era agora completamente visível. Seus cabelos eram lisos, muito escuros, e grandes apenas o suficiente para que seus dedos passeassem pelo couro cabeludo, como certamente o fez. Os olhos cor de mel formavam com o sorriso e a barba mal feita um ar de permanente brincadeira.
A mulher riu um riso torpe, de pedido de desculpas. Como se tivesse ao mesmo tempo resposta e pedido, fechou a porta, deixou os sapatos no chão e sentou-se na cama.
-Eu sinto muito - disse olhando para o emaranhado de tecido por entre seus pés e os dele. Ele colocou as mãos em seu queixo e a fez levantar os olhos. Arrumando sua mecha vermelha atrás da orelha, disse:
-Eu não. - e pressentindo mais uma fuga, declarou, com os olhos perfurando a alma esverdeada em sua frente - Eu sou miseravelmente apaixonado por você.
A mulher olhou completamente aturdida e confusa para o homem que simplesmente sorria com covinhas se formando ao lado da boca perfeitamente delineada. A boca da mulher, por sua vez, se abria e fechava quase instantaneamente, repetidas vezes, num esforço inútil de defesa. Alguns segundos ou dias ou talvez  algumas primaveras floridas mais tarde, ela disse:
- Você nem me conhece. - Ele sorriu de novo, como se esperasse por essa resposta muito antes dela desconfiar que precisaria dizê-la.
- Você não me conhece mesmo, mas eu, ah, eu sei tudo sobre você. Ontem, quando nós fomos apresentados, eu já te achava linda. Já sabia que você  estudava cinema, que seu cabelo fica indescritível contra a luz do sol, que você caminha olhando para frente, como se nada pudesse te impedir de continuar. Sabia que você vai na praia todo sábado à tarde e espera escurecer para sair da areia. Depois de ser formalmente seu conhecido, eu descobri que também é muito inteligente e divertida, que tem um charme incomparável e um poder de sedução impagável. Descobri que você nunca encontrou o que procura e por isso acha que tem um vazio no olhar. Mas você está errada. Seu olhar brilha e muito exatamente porque você não desistiu de tentar. Sei que você dança incrivelmente bem com um copo de Margarita na mão, mas não sabe o que fazer quando as duas estão vazias. Sei que parecia encantadoramente bêbada, mas estava irritantemente lúcida. Sei que me escolheu como vitima da noite pelo mero acaso de eu entender sua piada sobre aquele filme. Sei, bem, na verdade, isso eu só suponho, que você não esperava acordar tão tarde. Sei que fica linda de maquiagem borrada, cabelo molhado e blusa larga. De novo, suponho que não goste do dia seguinte, que ninguém antes tinha acordado, que você evita despedidas, que pagaria metade da conta na saída. Principalmente, eu sei, e isso eu sei mesmo, que nada do que eu disser vai mudar o fato de que você vai sair por esta porta de costas para mim, sem acreditar em nada do que eu tenha dito ou em qualquer promessa que eu vá fazer. Talvez porque eu não saiba sua cor preferida, ou o tipo de musica que odeia ou o livro que mais leu, ou porque eu nunca te ouvi cantar. Mesmo nós dois sabendo que o pouco que sei de você é muito mais importante que todo o resto que você não vai me deixar descobrir. Mesmo que nós dois tenhamos assistido conscientemente o seu teatro de um ritual que não merecia ser repetido essa manhã.
A mulher se levantou decididamente impressionada e desconfortável. Quando sentiu seus pés no chão e o mundo derrubar tudo de volta ao seu lugar, olhou para o homem sentado na cama e sorriu o sorriso mais verdadeiro de toda sua vida gravada em 9 mm.
-Você não sabe minha flor predileta. - e foi embora como os dois sabiam que faria.
Ele só não sabia que ela parou atrás da porta porque desde o começo de seu discurso não conseguia respirar. Tanto ele sabia, mas ignorava que enquanto juntava suas roupas ela ainda não saíra do lugar, seus pés de chumbo não conseguiram mover mais do que a boca para repetir o nome dele. E as três letras se uniram numa só silaba para passear por todo seu corpo e dançar na sua língua. Tom, Tom, Tom. Aquele nome parecia pertence-la como apenas um destino pertence a uma estrada. Tom, Tom. E ela fechou os olhos, respirou fundo, ergueu a cabeça e começou a andar. Tom. Dentro do quarto, ele terminava de vestir sua roupa. Uma calça jeans azul, uma camiseta de alguma banda inglesa dos anos 80 que ninguém além dele havia escutado, e um All Star preto de cano médio. Pensou ter ouvido um barulho do lado de fora, de um pulo abriu a porta com a camiseta meio vestida e falou um tanto quanto alto, sem gritar:
-Scarlet?! - e silencio.
Scarlet estacionava na porta de seu apartamento numa pressa homérica de subir as escadas e desfalecer-se no chão de sua sala sem mexer um músculo sequer, para ser possível, talvez, pensar. Morava no quinto andar e sempre subia as escadas. O porteiro era acostumado a ver a moradora chegar em casa às sete da manhã, mas ela estranhou quando quase no segundo andar ouviu uma voz do inicio das escadas:
-Dona Scarlet, preciso falar uma coisa pra Senhora...
-Agora não, Seu André - Scarlet respondeu sem hesitar um degrau. Chegou sem demora em seu recanto, entrou e deitou no chão da sala. Antes de começar a pensar, seu olho piscou ao contrário e ela reparou algo fora do comum. Levantou-se assustada e viu vários buquês de cravos vermelhos e brancos, e alguns vasos de amor-perfeito de cores diferentes na mesa de centro. Atônita, recolheu um bilhete que encontrou em um dos vasos e leu: “Nem você sabe sua flor predileta, Scar. ps.: You’re so cool.”. Com um sorriso escondido nos lábios, Scarlet despencou no piso e dormiu entre as suas flores até o entardecer.
Acordou com o pôr-do-sol, colocou um maiô, um vestido e saiu descalça com o objetivo comum dos sábados. Como em qualquer outra semana, sentou na areia até escurecer. Na hora em que costumava ir embora, abandonou o vestido e mergulhou no mar. Depois disso foi para a calçada e viu a pedra em que sentava para observar o céu à noite. Caminhou até ela e sentou ao lado do homem que já se encontrava ali. Não falaram nada por muito tempo, o vento eternizando a noite e moldando suas faces. Até que Scarlet declarou quase num sussurro: "Minha flor predileta é Flor de Lótus”. Tom riu, e ainda sem olha-lá respondeu: “Eu sabia, claro, mas onde acharia uma dessas às cinco da madrugada?... Mas eu sei que você vai deixar essa passar, afinal, eu uso o tipo certo de cueca.”. Scarlet balançou positivamente a cabeça, degustando o riso: “ Samba canção, é... Não tem como dispensar um cara com o tipo certo de cueca. Estão difíceis de encontrar, esses, sabia?”
E seus olhares se cruzaram.

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